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Vítima de derrame, britânico só consegue dizer 'sim' e 'não'

Para interagir com Graham Pawley, o interlocutor costuma ter que fazer perguntas com respostas afirmativas ou negativas

4 jan 2016 - 13h12
(atualizado às 14h25)
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Graham teve um derrame grave em 2013, que o deixou quase incapaz de se expressar
Graham teve um derrame grave em 2013, que o deixou quase incapaz de se expressar
Foto: Ed Ram/BBC

É comum que vítimas de derrames cerebrais graves tenham problemas de comunicação como consequência. Mas o britânico Graham Pawley é um caso raro, porque entende tudo mas não consegue dizer quase nada. Tem que se virar apenas com "sim" e "não".

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Para interagir com Graham, o interlocutor costuma ter que fazer perguntas com respostas afirmativas ou negativas até descobrir a resposta certa.

Estou sentado no sofá do apartamento de Graham, olhando sua ficha médica. Ele está tentando pedir que eu leia em voz alta para ele.

Ele consegue falar "e" ("and", em inglês) e "mmmm", que para ele significa "sim", e também faz um som de "urr". Quando diz "urr", quer dizer que tem mais algo a falar e quer que alguém tente descobrir o que é.

"E urr...", ele diz enquanto leio a ficha médica.

"Sim, acho bem interessante ver isso", eu respondo.

"Não.''

"Desculpe, tem certeza que posso dar uma olhada nisso?"

"Mmm, mmm. E urr…"

"Você quer dar uma olhada aqui"?"

"Não", ele balança a mão esquerda de maneira indecifrável.

"Posso ficar com a ficha?"

"Não", ele responde com mais gestos.

Paul Webley, voluntário que presta assistência a Graham, também tenta adivinhar. "Está bem? Ele é a primeira pessoa que você deixa ler a ficha?", pergunta.

"Não, não, não", diz Graham.

A situação se estende por um minuto ou dois. Além de poucos movimentos, ele pouco consegue usar as mãos para se expressar. "Isso é útil? Estou ajudando?", pergunto.

"Mmm. E urr…"

"Você quer que ele leia para você?", questiona Paul.

"Mmm, mmm", responde Graham.

"Veja, sempre conseguimos chegar lá", diz Paul, com um sorriso.

Histórico

Em julho de 2013, Graham teve um derrame grave, que o deixou quase incapaz de se expressar. Ele não consegue ler nem escrever, mas entende tudo o que lhe é dito. Não consegue mexer o braço direito e tem movimentos limitados na perna direita, e ambos lhe causam dores.

Um derrame ocorre quando há uma interrupção parcial no fluxo de sangue para o cérebro - normalmente por um coágulo bloqueando uma veia.

"As consequências de um derrame podem afetar seu cérebro de várias maneiras. A maior parte delas transforma sua vida", diz Cate Burke, diretora-assistente da Stroke Association, organização social britânica de apoio a vítimas de derrames.

"O problema de Graham é chamado afasia (perda da linguagem causada por lesão cerebral)", diz Tony Rudd, diretor do sistema de saúde britânico responsável pela enfermidade. "É raro ter problemas severos de comunicação e não ser afetado em termos de compreensão."

Mas pode acontecer. "Embora a parte do cérebro que controla a comunicação seja interconectada com a seção que controla o entendimento, elas são separadas", explica Rudd.

"Afasia pode significar apenas ter problemas para encontrar as palavras certas. Mas também pode ser pior, como no caso de o paciente não ter a menor compreensão do que é dito nem conseguir expressar nada."

O caso de Graham é severo, mas não é inédito. Ele não consegue escrever ou ler mais do que uma ou duas palavras simples, mas consegue acompanhar TV e filmes. Pode usar um telefone, mas não consegue digitar qualquer letra.

Sempre vestido de forma impecável em uma camisa bem cortada e gravata fina, Graham, de 56 anos, vive em um edifício abrigo na região de King's Cross, centro de Londres. Seu apartamento fica no quarto andar de um bloco recém-inaugurado, que conta com assistência médica 24 horas. Quase todas as paredes do apartamento são cobertas por amplas pinturas a óleo.

"Ele pintou todas, ele adora Caravaggio", diz Paul.

Limitações

Apesar das limitações de comunicação, Graham ainda sonha com um novo amor
Apesar das limitações de comunicação, Graham ainda sonha com um novo amor
Foto: Ed Ram/BBC

O drama da transformação na vida de Graham fica claro ao conhecê-lo. O derrame colocou um ponto final em uma série de coisas que o definiam. "Ele costumava pintar, desenhar, fazer apresentações na rua e criar suas próprias roupas. E não pode fazer mais nada disso", conta Paul. Coleções de lápis de cor e tubos de tinta estão sem uso sobre uma mesa de jantar.

Graham tem capacidade motora na mão esquerda para usar seu iPad e carregar sua máquina de enrolar cigarros, mas não consegue executar movimentos complexos. Uma de suas pinturas na parede está danificada - e ele não conseguirá consertá-la.

A aparência, sua higiene e a organização do apartamento deixam claro que Graham é um homem de detalhes. Dentro de um arquivo de plástico preto, guardado em um armário no quarto, estão diversos envelopes. Graham tira um por um. Ele era engenheiro mecânico, e as cartas contam a história de sua carreira, da construção de cortadores de grama ao desenvolvimento de peças para aviação.

Há vídeos no YouTube, publicados em 2008, em que Graham toca gaita. Ele estava assistindo a um deles no iPad quando Paul chegou para uma visita. Graham costumava se apresentar na região londrina de Camden em suas horas vagas. A gaita continua na caixa original, em um móvel sob a televisão. Há fotos de família na sala e no quarto - muitas são de seu filho, Alex, que morreu aos nove anos de uma doença congênita.

Coletes que o próprio Graham costurou ficam organizados por cor em uma armação no quarto. Graham segura uma peça pelo cabide. "Alex", é a inscrição na etiqueta escrita à mão. "Ah, porque esse era o nome de seu filho?", diz Paul.

Paul Webley é o coordenador do auxílio voluntário na Opening Doors, organização de caridade que ajuda pessoas LGBT acima de 50 anos. "Graham foi indicado a mim pela organização Age UK Camden. Eles contatam pessoas que trabalham com acomodações especiais. E em vez de encontrar um voluntário para ele, eu mesmo o acolhi."

Companhia

Paul Webley e Graham se conheceram no começo de 2015
Paul Webley e Graham se conheceram no começo de 2015
Foto: Ed Ram/BBC

Paul visita Graham todo sábado. "Foi um caso incomum, e ele precisava de um amigo gay", diz Paul. "Entrei aqui e pensei: 'Como vamos fazer isso (dialogar)?' Duas horas depois parecia que estávamos conversando por horas."

Os dois se dão bem, compartilham tragos de cigarro e riem um do outro. Para alguém que não consegue fazer uma pergunta ou contar uma piada, Graham é, surpreendentemente, uma boa companhia.

Fora Paul, Graham não recebe muitas visitas de amigos. Ele rompeu com sua ex-mulher há 12 anos, assumiu-se gay e se mudou-se para o apartamento onde mora atualmente.

Ele não costuma se encontrar muito com uma de suas filhas adultas, que passou um tempo hospitalizada, mas a outra o visita de vez em quando. Graham também quase não vê a ex-mulher, mas diz que eles se dão bem. Sua irmã aparece às vezes, e um outro irmão morreu há alguns anos.

Graham usa um chapéu preto com pequenos pedaços de veludo. A peça cobre uma grande cicatriz circular deixada por uma cirurgia após o derrame.

"O cérebro tem plasticidade, e embora as partes que ele usava para se comunicar estejam mortas, outras partes podem ser treinadas para assumir essa tarefa", diz Cate Burke.

"Não gosto de dizer que as pessoas nunca irão se recuperar, mas é difícil que ele tenha uma recuperação total", afirma Rudd. "Terapia da fala e comunicação com outras pessoas irão ajudá-lo a melhorar seu nível de comunicação."

Impacto

A condição de Graham é classificada como afasia, perda da linguagem causada por lesão cerebral
A condição de Graham é classificada como afasia, perda da linguagem causada por lesão cerebral
Foto: Ed Ram/BBC

Graham cai no choro quando questionado sobre como se sente por tudo o que aconteceu.

Ver esse homem tão positivo chorar em silêncio, sentado na janela, dá uma ideia da profundidade do impacto do derrame em sua vida. As lágrimas secam e ele se recompõe aos poucos. E, incrivelmente, parece feliz.

Mais tarde, em um brechó, Graham experimenta um casaco que é parte de um terno. Ele se levanta da cadeira de rodas e se olha em um espelho que Paul segura. O dono da tenda ri e outros clientes dizem que o casaco lhe cai bem. Ele consegue pechinchar o preço com o dono do estabelecimento.

Como tantas pessoas que perderam o que sabiam fazer, Graham revelou seu caráter e a paixão pela vida com o derrame.

O prazer que encontra em sua habilidade de encantar e desarmar as pessoas é contagiante e faz suas conquistas deixarem as limitações em segundo plano.

"É dessa maneira com todo mundo que ele encontra - acho que é isso que o mantém vivo", diz Paul.

Rotina

Graham recebe a ajuda de Paul durante passeio
Graham recebe a ajuda de Paul durante passeio
Foto: Ed Ram/BBC

Graham não recebe muita assistência, mas há pessoas de prontidão caso ele sofra uma queda ou qualquer outro incidente. Ele sai à rua em sua cadeira de rodas, faz compras e cozinha sozinho.

Ele e Paul vão a galerias de arte e saem para um drinque quando se encontram. "Uma vez ele me levou à igreja que frequenta", diz Paul. "O padre ficou superfeliz em me conhecer, ele não sabia o nome de Graham nem nada sobre a história dele."

Para muitos é difícil começar a entender, e se solidarizar, com a dimensão da mudança que levou à situação de Graham hoje. "Afasia extrema é pior do que ser lançado de repente em um país com uma língua e modo de comunicação totalmente diferentes", explica Rudd.

Mas, no caso de Graham, ele está mais perto da normalidade que conhecia. Ele pode entender tudo, ainda que sua capacidade de dizer apenas "sim" e "não" traga isolamento. As pessoas podem apenas tentar adivinhar o que ele está tentando dizer.

"Imagine sair do cinema com amigos e não poder dizer nada quando perguntam o que achou do filme", diz Paul. Normalmente expressar opiniões é uma ferramenta que as pessoas usam para construir sua identidade. E, como a maioria das coisas na vida de Graham, a expressão da individualidade se tornou imensamente difícil.

Futuro

Graham durante visita a uma feira de roupas usadas: empatia com todos ao redor
Graham durante visita a uma feira de roupas usadas: empatia com todos ao redor
Foto: Ed Ram/BBC

E o que Graham espera do futuro? Pintar novamente, ler, fazer mais coletes?

"Mmm, mmm, urr…" Ou seja, sim - mas há algo mais.

"Amor, um namorado, paquerar", diz Paul.

"Mmm, mmm,", responde Graham.

"Ele me pediu para localizar um cara que costumava encontrar antes do derrame, mas acho que ele se mudou de Londres. Há aplicativos de paquera, mas acho que para Graham será algo que acontecerá com alguém que encontre pessoalmente. Esse é o próximo passo, eu acho", diz Paul. "Ele amaria ter um relacionamento de novo, assim como todo mundo."

Autorretrato em um dos quadros que decoram a casa de Graham
Autorretrato em um dos quadros que decoram a casa de Graham
Foto: Ed Ram/BBC
Instrumentos usados por Graham para pintar e desenhar estão sem uso sobre uma mesa de jantar
Instrumentos usados por Graham para pintar e desenhar estão sem uso sobre uma mesa de jantar
Foto: Ed Ram/BBC
Fotos de família estão espalhadas pelo apartamento de Graham, como a do filho, Alex, que morreu aos nove anos
Fotos de família estão espalhadas pelo apartamento de Graham, como a do filho, Alex, que morreu aos nove anos
Foto: Ed Ram/BBC
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